segunda-feira, 28 de março de 2011

Velho bandido

Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu para mim
Você nasceu para mim

Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim

Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons


Chico Buarque

domingo, 20 de março de 2011

Tempo vai, vento vem

E o vento leva.

Madrugada outra vez. No céu a lua cheia de noites vazias. Corre o tempo em câmera lenta. Passos apertados e, pelos dedos, cinzas de cigarros. Pelos devaneios, cinzas de lembranças. O tempo fecha, ameaça chover e o asfalto não molha. Sua vida tem sido assim: a iminência; não sabia mais de que. A expectativa por uma mudança, uma pessoa, outra fase, não importa. O que tiver de diferente por favor que piorqueissonãofica. Mas o mundo inteiro sabe que fica.
Foi quando começou a chover. Ele estranhou, pois queria mesmo um bocado d’água. Reduziu o passo até parar no meio de uma rua menos movimentada, plena reflexão. Deixou-se encharcar e viu que a água poderia limpar suas mãos das cinzas de um cigarro banal, porém jamais o aliviaria a lembrança - pelo contrário. Dentro da roupa molhada, primeiro vislumbrou-a correndo, divertida sob a chuva durante um carnaval qualquer. Poderia ter sido uma doce recordação, mas - embriagados devaneios - não soube precisar como ela era – cinzas – o que trouxe-lhe certa aflição. Olhando ao redor reconheceu que poderia já ter estado ali com ela. E desconfiou que talvez neste momento alguém a estivesse levando para correr em uma rua como aquela, numa cidade como aquela e com roupas como as suas. Voltou a andar. A chuva parou. Ela voltaria - não a chuva, ela.-? Pela noite, passou a acreditar possuir uma conexão com ela em outro plano e talvez por isso não soubesse definir nem lembrar quase nada além de seus sentimentos. Mas sabia que já estivera mais próximo dela. A reconhecia de alguma memória. Mirada pelo triste céu de São Paulo ou ardida das areias do Nordeste. Foi então que pensou uma solução: juntando as cinzas da lembrança, tentava elaborar a estátua mais bonita para apelidar com o seu nome – se lembrasse nome. Catava com as duas mãos, juntava e colocava monte sobre monte antes de começar a dar formas. Obviamente nem conseguiu terminar os pés. Cinzas são leves e insensíveis demais. Gostam de liberdade e seu maior amigo é o vento. E como ventava nos pensamentos desse cara. Talvez não fosse mesmo bom brincar com uma lembrança meio morta.

Contemplando uma velha amarga angústia, ele traçava a cidade na madrugada, agora afim de uma dose da bebida mais forte que encontrasse, para ajudar a engolir qualquer coisa presa na garganta. Sua sombra desfilando na luz amarela repercutida pelo asfalto molhado. E a vida ardendo entre sonho e realidade. “Afinal, ela existiu?”

Já arrastando o hoje na conta do ontem, vazio, esperava o amanhã trazer uma resposta.


Matheus Marins
20/3/2011

sábado, 12 de março de 2011

Um pedaço do céu

Nesse momento - dizem que cabe aos homens esse gesto, e eles eram mesmo meio antigos - talvez ele tenha pensado em oferecer um cigarro a ela, em perguntar se já tinha visto aquele filme, se queria tomar um café no Ritz, até mesmo como ela se chamava ou alguma outra dessas coisas meio bestas, meio inocentes ou terrivelmente urgentes que se costuma dizer quando um desses rapazes e uma dessas moças ou qualquer outro tipo de pessoa, e são tantos quantas pessoas existem no mundo, encontram-se de repente e por alguma razão, sexual ou não, pouco importa se por alguns minutos ou para sempre, tanto faz, por alguma razão essas pessoas não querem se separar. Mas como ele era mesmo sempre um tanto lento, não perguntou coisa alguma, não fez convite nenhum. Nem ela. Que lenta não era, mas apenas distraída. Ela então sorriu pela terceira vez, e já de costas abanou de leve a mão abrindo os dedos, como Sally Bowles em Cabaret, e continuou a descer a rua Augusta. Ele também sorriu pela terceira vez meio sem jeito como era seu jeito, enfiou as mãos ainda mais fundo nos bolsos, como Tony Perkins em vários filmes, coçou a barba por fazer e resolveu subir novamente a rua Augusta.

CFA