domingo, 15 de maio de 2011

Um pedaço que falta

A única pista que eu tinha dele era o envelope com o endereço de Porto Alegre. Encontrara, entre as bagunças da sala, uma carta de 98 nunca respondida. E você imagina o que treze anos não fazem... Muito maior essa barreira temporal que a quilometragem infinda entre Rio de Janeiro e POA. E por falar assim, supõe-se que eu queira reencontrá-lo. Não sei. Nunca soube exatamente sobre nada na vida. Dou os passos como um carro em alta estrada pela noite: enxergo um par de metros à frente e vou atropelando o asfalto sem ver placa, sem querer chegar. Foi assim sem saber que, por uma linha me conduzindo no caminho ou só por mudar a rotina no feriado, comprei passagem para Porto Alegre e pedi a um amigo de lá um pouso para estes dias. O envelope na mala.
Do alto do avião vi um rio, mentiroso, que corria para o mar. Se fazia de manso mas não era. Também imaginei o clima, mentiroso. Um frio sem fim no primeiro passo fora do avião, apesar do sol. Mentiroso também eu, logo entendi a linha que me guiava. Torta de saudade. E eu sem responder uma carta. Ele deve ter ficado ferido e resolvido não enviar mais nada. Vai ver até me esqueceu.
Já hospedado, anotei no celular o residencial do meu amigo como "Casa". Nada mais justo. Saímos com um pessoal à noite do primeiro dia lá. Nada demais, com exceção ao caminho até um bar que visitamos. Bela cidade. Queria vê-la de dia também. Acho que só se conhece um lugar depois de presenciar suas formas às claras e às escuras. Assim, amanhecendo no prédio, deixei um bilhete e fui. Mesmo rumo, belezas, mas, não sei a partir de quando, me desvirtuei do caminho e dei na rua Manuel de Barros, quando era para ser Almirante Barroco. Por sorte carregava um mapa. E há de ser ridículo que, investigando os bolsos, descobri ter confundido o mapa com o envelope. Ainda mais ridículo o fato de que o endereço no envelope era da rua Manuel de Barros! Irreversível. A passos largos fui até o número 83 -do envelope. E hesitei, senti vergonha. Vi se ninguém passava pela rua e me apoiei no murinho da casa para espiar. Isso bastou para um mentiroso pastor alemão - era para ser dócil - do quintal ladrar ensandecido, tentando me atacar e despertando os cães da vizinhança toda, que despertavam suas respectivas vizinhanças da mesma forma. E assim parece que toda cidade ainda latia quando desci do táxi na porta do prédio do meu amigo. Subi aos sufocos para um banho. Limpo, menos assustado, deitei no sofá e cadê o meu celular? Provavelmente pela bagunça da mala. Do número de casa, liguei e esperei o som sair debaixo das roupas, talvez. O som não veio, mas chamava. Permaneci na linha até que
- Alô.
Reconheço instantaneamente a voz madura, meio grave, meio gasta do tempo, da vida. Gelado, não consigo responder.
- Alô, tem alguém? Achei este celular na rua, me ouve? Olha, gente, eu desligo.
Então respondo por reflexo, tremido de culpa.
- Papai, sou eu.



Matheus, 06/05/11

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